Esse texto é de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta nº 389 de fevereiro de 2005. Paulo Urban, é médico psiquiatra, e fundador da Psicoterapia do Encantamento.
Dentre todos
os arquétipos do Tarô, entendo ser “A Estrela”, Arcano XVII, aquele cuja
metáfora mais nos toca intimamente, posto que encerra uma lição fundamental a
ser assimilada por todo peregrino que deseja fazer cumprir os seus desígnios
nesta difícil jornada em que se traduz nossa existência.
Isto
porque a esperança, significado oculto desta carta, muito
distante do conceito popular que a trata como a “última que morre”, antes é
virtude que alimenta a alma em sua sempiterna evolução, constituindo-se num dos
raros aspectos capazes de conferir à essência anímica seu quê de imortalidade.
A esperança,
sutil arcabouço de nossa estrutura psíquica, nobre em seus propósitos, reúne em
si delicada dupla função (que somente ela própria pode executar com natural
discrição e ousadia), visto que se propõe a nos servir de tábua de salvação
quando quer que nos vejamos num mar de desespero, ao mesmo tempo que nos
estimula a descobrir em nosso âmago a coragem perdida, capaz de nos projetar
sobre os abismos que precisam ser transpostos.
Isto
faz do Arcano XVII um núcleo de luz, como a propósito são
as estrelas, de onde parte a orientação para todo aquele que decida visitar-se
interiormente, na ânsia por sinais que lhe direcionem melhor em sua viagem
arquetípica, passo a passo pela vida.
A 17a
carta do tradicional tarô de Marselha nos mostra uma jovem nua,
ajoelhada sobre a perna esquerda, entretida em verter o líquido azul de duas
ânforas vermelhas sobre o leito de um rio que passa à sua frente, elemento
contrastante com o solo arenoso da paisagem que se encontra à sua volta, sobre
o qual vemos dois arbustos e uma gramínea plantados de modo esparso. Nossa
personagem acha-se voltada para a esquerda, com o pescoço ligeiramente
arqueado, insinuando dobrar-se sobre si mesma, denotando com sua postura que
ela vivencia um processo introspectivo, centrada que está, entregue à sua
solitária condição, procurando relacionar seu mundo emocional (ou seu
inconsciente pessoal), representado pelas águas que escoam de seus cântaros,
com o psiquismo coletivo, implícito na imagem da grande água que recebe dela os
conteúdos de seus jarros, englobando-os.
Seus cabelos,
que lhe caem livremente sobre os ombros, são azuis e ondulados, e sugerem a
imagem de uma cascata, a potencializar o caráter intuitivo deste seu ato de
precipitar as águas próprias nas que se põem à sua frente. Convém explicar: no
tarô de Marselha, interpretamos o azul como a cor dos processos inconscientes e
emocionais; já o vermelho associa-se a funções conscientes e racionais.
A mulher
despida suscita o arquétipo da alma humana, imaculada em seu
estado natural, ingênua e imatura também, inconsciente de si mesma, mas prestes
a sofrer uma experiência que a marcará indelevelmente, desde que aceite trocar
esta sua condição de indiferenciação da fonte primordial com a qual ela comunga
pelo caminho de dor e de escolhas que forçosamente a fará evoluir e
transformar-se. A Estrela, particularmente, celebra esse momento cósmico em que
a alma humana, absorta em sua introversão, acha-se completamente integrada à
natureza divina de que é dotada, e contempla-se a si mesma, posto que vê seu
rosto refletido nas águas primordiais.
Com absoluta
discrição, a Estrela revela-nos ainda três mandalas, símbolos da totalidade
psíquica, a expressar a harmonia dinâmica entre o psiquismo humano e a ordem
cósmica universal, própria de uma condição edênica como a que o Arcano XVII
representa. A primeira delas depreende-se da postura assumida pela jovem que,
com ambos os braços e as pernas dobrados, sugere desenhar a figura da cruz
suástica, elemento mandálico presente em culturas milenares ocidentais e
orientais. A Estrela guarda ainda a particularidade de ser o único Arcano em
que os quatro elementos da natureza se reúnem (terra, água, fogo e ar, este
último ressaltado pelo pássaro, símbolo também da alma, pousado sobre o arbusto
da esquerda), de modo a denotar a segunda mandala oculta. Já a
terceira, podemos observá-la no conjunto de 8 estrelas que brilham numa
formação quadrangular na metade superior da lâmina; isto porque o 8, número do
equilíbrio e da Justiça (Arcano VIII), acha-se eqüidistante ao 4 e ao 12, que,
por excelência, dão-nos a idéia de algo cíclico e completo, fechado em si
mesmo, haja vista as 4 estações e os 12 meses do ano, por exemplo.
Essas
estrelas, sete delas
menores, organizadas em torno de uma de maior brilho, tanto conferem nome ao
Arcano quanto representam sua lição oculta, que jamais deve ser esquecida: elas
são nossa esperança, capital virtude, espécie de certeza subjetiva de que as
almas nascem dotadas, única capaz de iluminá-las e orientá-las em sua difícil
missão de compreender-se, processo este que envolve extremos desafios.
Isto porque
nossa jovem não tem sequer consciência dos perigos que lhe farão frente no
capítulo seguinte da jornada, o Arcano XVIII, “A Lua”, cujo arquétipo bem
representa nosso mundo sombrio, inconsciente e profundo, dotado de potenciais
inatos e vesânicos, capazes tanto de aniquilar quanto transformar o ego. A Lua
diz respeito aos porões da alma e assinala o tanto de armadilhas e labirintos
psíquicos que jazem latentes em nosso interior, capazes de nos iludir e nos
prender sempre que nos propomos a atravessar visceralmente as trevas pessoais,
visto que nunca escapamos à sina de fazê-lo senão por caminhos tortuosos e
dolorosos que, em compensação, cumprem levar-nos a um grau sempre crescente de
autoconhecimento.
Claro,
muitos são os que se perdem ou sucumbem ao enfrentar as
trevas. Tal perigo sempre existe e não podemos ser hipócritas diante da dura
realidade do mundo anímico. De modo prático, vemos exemplo disso naqueles que
se deixam tomar por quadros depressivos graves e que, entregando-se a um
processo mórbido vicioso, acabam num estreitamento existencial que não permite
enxergar as perspectivas nem os novos horizontes que sempre nos esperam mais
adiante.
Tal situação,
por demais comum nessa época conturbada que vivemos, em que muitos perdem os
próprios referenciais em meio a uma declarada crise de valores, exige
certamente o apoio de familiares e amigos, quando não, sobretudo, um tratamento
clínico especializado. Independentemente disso, porém, uma parcela dos que se
perdem nos subterrâneos de si mesmo durante as provações do drama anímico,
infelizmente evolui para situações de desespero; alguns chegam mesmo à
conclusão de que vivem uma vida sem sentido e se colocam à beira do abismo
suicida.
De fato,
todo processo introspectivo voltado ao desenvolvimento anímico pode estar
fadado a perecer e transformar-se num episódio depressivo. Neste aspecto,
ressalta-se a importância do Arcano XVII, cujo arquétipo sempre protege a alma
humana que, espontaneamente debruçada em seus afazeres, não escapa de seu
especular mistério, que a obriga a enxergar-se nas águas da vida, ao mesmo
tempo em que percebe nelas o reflexo do brilho das estrelas que estão presentes
num mundo transcendente, num plano celestial simbolicamente inatingível pela
consciência comum, do qual extraímos, entretanto, toda nossa inspiração. Esta,
sob forma de intuição e de esperança, atua como fio condutor de nossos passos
no caminho da individuação. A alma, diante do espelho, não tem como se furtar à
máxima eternizada pelo Oráculo de Delfos (Gnôthi s’autón), que nos
desafia a conhecer primeiramente nosso mundo interior, para que possamos só
assim compreender os segredos dos homens e dos deuses.
Podemos
afirmar com segurança que os mitos não foram primeiramente
lidos no céu para daí baixarem à Terra, mas que surgiram do âmago humano, de
onde partiram para bordar de histórias e sabedoria o manto celeste, segundo um
processo natural de projeção inconsciente. Sabemos também que todos os povos e
culturas que desenvolveram ciência astronômica/astrológica puseram na abóbada
os elementos necessários à nossa orientação e sobrevivência, de modo a ensinar
às gerações vindouras suas verdades milenares, abstraídas de experiência
pessoais e coletivas reunidas ao longo da grande epopéia vivida pela espécie
humana. Concordantes com esse pensamento, os hermetistas afirmam que os heróis
e divindades que encontram representação no céu são testemunho de nossa
realidade interior, dotada de potenciais psíquicos genuínos que em nada ficam
devendo aos fenômenos que ocorrem em nossa realidade cotidiana e externa.
Mais que
isso, podemos considerar que as mitologias, universalmente,
assumem os astros como hostes ancestrais que nos olham e nos guiam,
simbolizando no plano celeste a individuação plenamente realizada por deuses ou
heróis que, antes de nós, já cruzaram com mestria o caminho da existência,
vencendo todas as suas particulares missões. Provas disso são infinitas; os
planetas todos recebem nomes de deuses seja qual for a cultura que escolhamos
estudar. As constelações de Perseu e de Héracles são também exemplos clássicos,
e ainda podemos citar tanto o Leão de Neméia como a Hidra de Lerna,
monstruosidades derrotadas por Héracles em seus dois primeiros trabalhos,
respectivamente associadas às provas iniciáticas do fogo e da água que o herói
transpõe. Ambas as bestas se acham projetadas no céu, como se estivessem a nos
lembrar perenemente que mesmo os nossos aspectos mais terríveis, sempre que
dominados e subjugados por uma consciência transcendente, encontram resolução
sublime.
No folclore
e na literatura brasileira encontramos semelhante conceito em nosso
“herói sem nenhum caráter”, Macunaíma, conforme nos conta Mário de Andrade, que
fez com que seu protagonista subisse aos céus em vez de morrer ao fim de sua
aventura terrena, transformando-se numa constelação que corresponde à Ursa
Maior. Até o famoso samba enredo da Portela imortalizou esta passagem: “Vou-me
embora, vou-me embora, eu aqui fico mais não, vou morar no infinito e virar
constelação…”.
Nesse
sentido, socorrem-nos as mitologias que, sem exceção,
consideram impossível o progresso espiritual para a alma que se furta à
obrigação maior de conhecer-se. Por isso os mitos propõem que ousemos
atravessar em toda sua extensão o mundo trevoso; apenas mediante o sincero
mergulho em nosso abismo desconhecido é que poderemos sair renascidos e
vitalizados do outro lado. Para tanto, precisamos estar abertos para reconhecer
nossos aspectos mais brutos e entregá-los à arte da transmutação alquímica,
para que possam ser transformados em algo que nos complemente essencialmente.
Para que
logremos êxito ao trilhar aquilo que os místicos denominam de Noite Negra
d’Alma, uma austera iniciação absolutamente pessoal, via de regra repleta
de situações de tortura psicológica e desespero, é preciso que nos entreguemos
confiantes ao processo de morte simbólica que A Lua representa, e que sigamos
pela noite sempre mantendo viva a chama da esperança, conforme nos foi confiada
pelo Arcano XVII. Isto porque podemos cair em armadilhas próprias e delas
depreender em certos momentos obscuros e difíceis da jornada, que tudo pareça
mesmo estar perdido, que a própria vida nem tenha sua razão de ser, quando
então, somente pelo resgate do foco luminoso de esperança é que voltamos a crer
com fé inabalável na verdade do renascimento, na ressurreição da alma,
anunciada pelos primeiros raios da aurora.
Afinal,
não é outro senão “O Sol”, estrela principal, elemento alquímico de iluminação
e transcendência, símbolo do encontro entre a consciência e o inconsciente,
quem nos aguarda no Arcano XIX. E a esperança é quem cumpre nos levar até ele.
Ela se revela pela luminosidade que trazemos na alma, resgate e reflexo das luzes
que intuitivamente sabemos existir no firmamento, morada dos deuses. Isto
porque a esperança faz valer a regra cósmica em que semelhante atrai
semelhante, de modo que se dirige em busca de uma Luz Maior ao mesmo tempo que
se deixa absorver pela experiência de êxtase e iluminação.
Outro sentido
que assume a esperança, principalmente em nosso crítico panorama contemporâneo,
é o de ser ela a grande guardiã da redenção da humanidade. Não obstante seja a
luz protetora da alma em seu aspecto individual, a esperança exerce ainda seu
papel mítico arrebatador em caráter coletivo, é ela o elemento capaz de
transformar as crises globalizadas de valores que transbordam em nossa
sociedade em condições que assinalem novas oportunidades e apontem para saídas
originais em meio ao grande impasse da civilização. Presumo que o cenário de
nosso mundo nunca tenha se sentido tão carente dessa virtude.
Conta-se que
originalmente a raça humana vivia tranqüila e sem guerras, mas quando Pandora,
moldada por Zeus a partir de uma nuvem, por curiosidade abriu a jarra que Zeus
oferecera-lhe como presente de núpcias entre ela e Epimeteu, dela saíram todas
as desgraças; somente a esperança restou presa à borda porque Pandora repusera
às pressas sua tampa. Curiosamente, o nome da noiva desastrada se constrói por Pan
= todo + dôron = presente. O mito grego nos ensina que todas as
vicissitudes da vida, ainda que gerem desespero, são em última análise
presentes dos deuses, que brincam de ocultar nas dificuldades da vida as
possibilidades de evolução da alma humana em seu natural desígnio de
espiritualizar-se. E como não poderia deixar de ser, Zeus entendeu que se
retirasse do homem a esperança; ele próprio estaria para sempre perdido, posto
que a humanidade encontraria seu fim, o que não lhe permitiria mais se
alimentar da dinâmica da vida. Por isso segue o signo: a esperança; e A Estrela
nos ensina uma verdade: na alma dos que buscam com justiça ela nunca morre!
Paulo Urban
0 comentários:
Postar um comentário
Namaste!
Seus comentários alegram nosso alma.