segunda-feira, 3 de setembro de 2012

ESPERANÇA: NATURAL DESÍGNIO DA ALMA

Esperança, tela de G. Watts, 1885



Esse texto é de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta nº 389 de fevereiro de 2005.   Paulo Urban, é médico psiquiatra, e fundador da Psicoterapia do Encantamento. 
 

Dentre todos os arquétipos do Tarô, entendo ser “A Estrela”, Arcano XVII, aquele cuja metáfora mais nos toca intimamente, posto que encerra uma lição fundamental a ser assimilada por todo peregrino que deseja fazer cumprir os seus desígnios nesta difícil jornada em que se traduz nossa existência.


Esperança, tela de G. Watts, 1885
Esperança, tela de G. Watts, 1885
Isto porque a esperança, significado oculto desta carta, muito distante do conceito popular que a trata como a “última que morre”, antes é virtude que alimenta a alma em sua sempiterna evolução, constituindo-se num dos raros aspectos capazes de conferir à essência anímica seu quê de imortalidade.
A esperança, sutil arcabouço de nossa estrutura psíquica, nobre em seus propósitos, reúne em si delicada dupla função (que somente ela própria pode executar com natural discrição e ousadia), visto que se propõe a nos servir de tábua de salvação quando quer que nos vejamos num mar de desespero, ao mesmo tempo que nos estimula a descobrir em nosso âmago a coragem perdida, capaz de nos projetar sobre os abismos que precisam ser transpostos.
Isto faz do Arcano XVII um núcleo de luz, como a propósito são as estrelas, de onde parte a orientação para todo aquele que decida visitar-se interiormente, na ânsia por sinais que lhe direcionem melhor em sua viagem arquetípica, passo a passo pela vida.
A 17a carta do tradicional tarô de Marselha nos mostra uma jovem nua, ajoelhada sobre a perna esquerda, entretida em verter o líquido azul de duas ânforas vermelhas sobre o leito de um rio que passa à sua frente, elemento contrastante com o solo arenoso da paisagem que se encontra à sua volta, sobre o qual vemos dois arbustos e uma gramínea plantados de modo esparso. Nossa personagem acha-se voltada para a esquerda, com o pescoço ligeiramente arqueado, insinuando dobrar-se sobre si mesma, denotando com sua postura que ela vivencia um processo introspectivo, centrada que está, entregue à sua solitária condição, procurando relacionar seu mundo emocional (ou seu inconsciente pessoal), representado pelas águas que escoam de seus cântaros, com o psiquismo coletivo, implícito na imagem da grande água que recebe dela os conteúdos de seus jarros, englobando-os.
Arcano XVII - Tarô de Marselha
Arcano XVII - Tarô de Marselha
Seus cabelos, que lhe caem livremente sobre os ombros, são azuis e ondulados, e sugerem a imagem de uma cascata, a potencializar o caráter intuitivo deste seu ato de precipitar as águas próprias nas que se põem à sua frente. Convém explicar: no tarô de Marselha, interpretamos o azul como a cor dos processos inconscientes e emocionais; já o vermelho associa-se a funções conscientes e racionais.
A mulher despida suscita o arquétipo da alma humana, imaculada em seu estado natural, ingênua e imatura também, inconsciente de si mesma, mas prestes a sofrer uma experiência que a marcará indelevelmente, desde que aceite trocar esta sua condição de indiferenciação da fonte primordial com a qual ela comunga pelo caminho de dor e de escolhas que forçosamente a fará evoluir e transformar-se. A Estrela, particularmente, celebra esse momento cósmico em que a alma humana, absorta em sua introversão, acha-se completamente integrada à natureza divina de que é dotada, e contempla-se a si mesma, posto que vê seu rosto refletido nas águas primordiais.  
Com absoluta discrição, a Estrela revela-nos ainda três mandalas, símbolos da totalidade psíquica, a expressar a harmonia dinâmica entre o psiquismo humano e a ordem cósmica universal, própria de uma condição edênica como a que o Arcano XVII representa. A primeira delas depreende-se da postura assumida pela jovem que, com ambos os braços e as pernas dobrados, sugere desenhar a figura da cruz suástica, elemento mandálico presente em culturas milenares ocidentais e orientais. A Estrela guarda ainda a particularidade de ser o único Arcano em que os quatro elementos da natureza se reúnem (terra, água, fogo e ar, este último ressaltado pelo pássaro, símbolo também da alma, pousado sobre o arbusto da esquerda), de modo a denotar a segunda mandala oculta. Já a terceira, podemos observá-la no conjunto de 8 estrelas que brilham numa formação quadrangular na metade superior da lâmina; isto porque o 8, número do equilíbrio e da Justiça (Arcano VIII), acha-se eqüidistante ao 4 e ao 12, que, por excelência, dão-nos a idéia de algo cíclico e completo, fechado em si mesmo, haja vista as 4 estações e os 12 meses do ano, por exemplo.
Essas estrelas, sete delas menores, organizadas em torno de uma de maior brilho, tanto conferem nome ao Arcano quanto representam sua lição oculta, que jamais deve ser esquecida: elas são nossa esperança, capital virtude, espécie de certeza subjetiva de que as almas nascem dotadas, única capaz de iluminá-las e orientá-las em sua difícil missão de compreender-se, processo este que envolve extremos desafios.
Arcano XVIII - Tarô de Marselha
Arcano XVIII - Tarô de Marselha
Isto porque nossa jovem não tem sequer consciência dos perigos que lhe farão frente no capítulo seguinte da jornada, o Arcano XVIII, “A Lua”, cujo arquétipo bem representa nosso mundo sombrio, inconsciente e profundo, dotado de potenciais inatos e vesânicos, capazes tanto de aniquilar quanto transformar o ego. A Lua diz respeito aos porões da alma e assinala o tanto de armadilhas e labirintos psíquicos que jazem latentes em nosso interior, capazes de nos iludir e nos prender sempre que nos propomos a atravessar visceralmente as trevas pessoais, visto que nunca escapamos à sina de fazê-lo senão por caminhos tortuosos e dolorosos que, em compensação, cumprem levar-nos a um grau sempre crescente de autoconhecimento.
Claro, muitos são os que se perdem ou sucumbem ao enfrentar as trevas. Tal perigo sempre existe e não podemos ser hipócritas diante da dura realidade do mundo anímico. De modo prático, vemos exemplo disso naqueles que se deixam tomar por quadros depressivos graves e que, entregando-se a um processo mórbido vicioso, acabam num estreitamento existencial que não permite enxergar as perspectivas nem os novos horizontes que sempre nos esperam mais adiante.
Tal situação, por demais comum nessa época conturbada que vivemos, em que muitos perdem os próprios referenciais em meio a uma declarada crise de valores, exige certamente o apoio de familiares e amigos, quando não, sobretudo, um tratamento clínico especializado. Independentemente disso, porém, uma parcela dos que se perdem nos subterrâneos de si mesmo durante as provações do drama anímico, infelizmente evolui para situações de desespero; alguns chegam mesmo à conclusão de que vivem uma vida sem sentido e se colocam à beira do abismo suicida.
De fato, todo processo introspectivo voltado ao desenvolvimento anímico pode estar fadado a perecer e transformar-se num episódio depressivo. Neste aspecto, ressalta-se a importância do Arcano XVII, cujo arquétipo sempre protege a alma humana que, espontaneamente debruçada em seus afazeres, não escapa de seu especular mistério, que a obriga a enxergar-se nas águas da vida, ao mesmo tempo em que percebe nelas o reflexo do brilho das estrelas que estão presentes num mundo transcendente, num plano celestial simbolicamente inatingível pela consciência comum, do qual extraímos, entretanto, toda nossa inspiração. Esta, sob forma de intuição e de esperança, atua como fio condutor de nossos passos no caminho da individuação. A alma, diante do espelho, não tem como se furtar à máxima eternizada pelo Oráculo de Delfos (Gnôthi s’autón), que nos desafia a conhecer primeiramente nosso mundo interior, para que possamos só assim compreender os segredos dos homens e dos deuses.
Podemos afirmar com segurança que os mitos não foram primeiramente lidos no céu para daí baixarem à Terra, mas que surgiram do âmago humano, de onde partiram para bordar de histórias e sabedoria o manto celeste, segundo um processo natural de projeção inconsciente. Sabemos também que todos os povos e culturas que desenvolveram ciência astronômica/astrológica puseram na abóbada os elementos necessários à nossa orientação e sobrevivência, de modo a ensinar às gerações vindouras suas verdades milenares, abstraídas de experiência pessoais e coletivas reunidas ao longo da grande epopéia vivida pela espécie humana. Concordantes com esse pensamento, os hermetistas afirmam que os heróis e divindades que encontram representação no céu são testemunho de nossa realidade interior, dotada de potenciais psíquicos genuínos que em nada ficam devendo aos fenômenos que ocorrem em nossa realidade cotidiana e externa.
Grand Jeu de Mlle. Lenormand - Héracles e a Hidra; acima deles a constelação, símbolo da individuação dos heróis.
Grand Jeu de Mlle. Lenormand - Héracles e a Hidra, acima deles a constelação, símbolo da individuação dos heróis.
Mais que isso, podemos considerar que as mitologias, universalmente, assumem os astros como hostes ancestrais que nos olham e nos guiam, simbolizando no plano celeste a individuação plenamente realizada por deuses ou heróis que, antes de nós, já cruzaram com mestria o caminho da existência, vencendo todas as suas particulares missões. Provas disso são infinitas; os planetas todos recebem nomes de deuses seja qual for a cultura que escolhamos estudar. As constelações de Perseu e de Héracles são também exemplos clássicos, e ainda podemos citar tanto o Leão de Neméia como a Hidra de Lerna, monstruosidades derrotadas por Héracles em seus dois primeiros trabalhos, respectivamente associadas às provas iniciáticas do fogo e da água que o herói transpõe. Ambas as bestas se acham projetadas no céu, como se estivessem a nos lembrar perenemente que mesmo os nossos aspectos mais terríveis, sempre que dominados e subjugados por uma consciência transcendente, encontram resolução sublime.
No folclore e na literatura brasileira encontramos semelhante conceito em nosso “herói sem nenhum caráter”, Macunaíma, conforme nos conta Mário de Andrade, que fez com que seu protagonista subisse aos céus em vez de morrer ao fim de sua aventura terrena, transformando-se numa constelação que corresponde à Ursa Maior. Até o famoso samba enredo da Portela imortalizou esta passagem: “Vou-me embora, vou-me embora, eu aqui fico mais não, vou morar no infinito e virar constelação…”.
Nesse sentido, socorrem-nos as mitologias que, sem exceção, consideram impossível o progresso espiritual para a alma que se furta à obrigação maior de conhecer-se. Por isso os mitos propõem que ousemos atravessar em toda sua extensão o mundo trevoso; apenas mediante o sincero mergulho em nosso abismo desconhecido é que poderemos sair renascidos e vitalizados do outro lado. Para tanto, precisamos estar abertos para reconhecer nossos aspectos mais brutos e entregá-los à arte da transmutação alquímica, para que possam ser transformados em algo que nos complemente essencialmente.
Para que logremos êxito ao trilhar aquilo que os místicos denominam de Noite Negra d’Alma, uma austera iniciação absolutamente pessoal, via de regra repleta de situações de tortura psicológica e desespero, é preciso que nos entreguemos confiantes ao processo de morte simbólica que A Lua representa, e que sigamos pela noite sempre mantendo viva a chama da esperança, conforme nos foi confiada pelo Arcano XVII. Isto porque podemos cair em armadilhas próprias e delas depreender em certos momentos obscuros e difíceis da jornada, que tudo pareça mesmo estar perdido, que a própria vida nem tenha sua razão de ser, quando então, somente pelo resgate do foco luminoso de esperança é que voltamos a crer com fé inabalável na verdade do renascimento, na ressurreição da alma, anunciada pelos primeiros raios da aurora.
Arcano XIX - Tarô de Marselha
Arcano XIX - Tarô de Marselha
Afinal, não é outro senão “O Sol”, estrela principal, elemento alquímico de iluminação e transcendência, símbolo do encontro entre a consciência e o inconsciente, quem nos aguarda no Arcano XIX. E a esperança é quem cumpre nos levar até ele. Ela se revela pela luminosidade que trazemos na alma, resgate e reflexo das luzes que intuitivamente sabemos existir no firmamento, morada dos deuses. Isto porque a esperança faz valer a regra cósmica em que semelhante atrai semelhante, de modo que se dirige em busca de uma Luz Maior ao mesmo tempo que se deixa absorver pela experiência de êxtase e iluminação.
Outro sentido que assume a esperança, principalmente em nosso crítico panorama contemporâneo, é o de ser ela a grande guardiã da redenção da humanidade. Não obstante seja a luz protetora da alma em seu aspecto individual, a esperança exerce ainda seu papel mítico arrebatador em caráter coletivo, é ela o elemento capaz de transformar as crises globalizadas de valores que transbordam em nossa sociedade em condições que assinalem novas oportunidades e apontem para saídas originais em meio ao grande impasse da civilização. Presumo que o cenário de nosso mundo nunca tenha se sentido tão carente dessa virtude.
Conta-se que originalmente a raça humana vivia tranqüila e sem guerras, mas quando Pandora, moldada por Zeus a partir de uma nuvem, por curiosidade abriu a jarra que Zeus oferecera-lhe como presente de núpcias entre ela e Epimeteu, dela saíram todas as desgraças; somente a esperança restou presa à borda porque Pandora repusera às pressas sua tampa. Curiosamente, o nome da noiva desastrada se constrói por Pan = todo + dôron = presente. O mito grego nos ensina que todas as vicissitudes da vida, ainda que gerem desespero, são em última análise presentes dos deuses, que brincam de ocultar nas dificuldades da vida as possibilidades de evolução da alma humana em seu natural desígnio de espiritualizar-se. E como não poderia deixar de ser, Zeus entendeu que se retirasse do homem a esperança; ele próprio estaria para sempre perdido, posto que a humanidade encontraria seu fim, o que não lhe permitiria mais se alimentar da dinâmica da vida. Por isso segue o signo: a esperança; e A Estrela nos ensina uma verdade: na alma dos que buscam com justiça ela nunca morre!
Paulo Urban

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