Texto de
Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 344, maio/2001
Paulo
Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento
O livre arbítrio
existe? Somos de fato
seres livres? Temos realmente permissão para fazer tudo aquilo que queremos, já
guardado o respeito pela liberdade alheia? E quanto ao destino? Nascemos
predeterminados, destinados a experimentar a sensação de que agimos “livremente”
dentro de certas possibilidades já previstas desde o início? Tudo o que fazemos
na vida nada mais é do que cumprir um risco já traçado, ou escolhemos, passo a
passo, o caminho por onde seguir, imprimindo ao longo dele nosso rastro pessoal
ao qual chamamos liberdade?
De fato,
sempre que assumimos um comportamento ético frente à vida, obrigamo-nos a
certas atitudes que bem nos revelam quão relativa é nossa liberdade diante dos
conflitos que nos são impostos, dilemas estes aos quais chamamos destino. Então,
escolhemos sofrer ou a dor é atributo inerente à existência? “Sofrer é o
destino dos mortais”, diria Eurípedes (485-406 a.C.), poeta trágico,
máxima esta à qual o filósofo existencialista Jean Paul Sartre (1905-1980)
traria o contraponto: “Estamos condenados a ser livres”. Uma angustiante
verdade! Afinal, toda ação humana pressupõe dor, não só a imediata, que nos
força a optar por algo em detrimento de todo o resto que deixamos, como a dor
seguinte, previsível ou não, acarretada pelas conseqüências que advêm de tais
escolhas.
O destino,
em verdade, parece aquele irmão ciumento, invejoso da capacidade humana de ser
livre. E não raro ele é cruel, capaz de enredar em suas malhas as nossas
frágeis liberdades diferenciadas, dignas de compaixão.
Ora, os
gregos, em época bem anterior a Homero (séc. IX a.C.) já
admitiam que nossa existência, desde o instante do nascimento, estivesse
predestinada. Imaginavam no Olimpo, morada dos deuses, a presença das três
Moiras (Parcas, entre os romanos) a decidir tudo por nós. Sem personificação no
princípio, depois representadas por figuras femininas, foram batizadas de
Cloto, “aquela que fia”; Láquesis, “aquela que mede ou lança a sorte”; e
Átropos (a, sem; e tropein, voltar) que, inflexível, corta
com sua tesoura o fio de nossas vidas, sem jamais retroceder em suas decisões.
O termo Moira vem do verbo meiresthai, a designar aquilo que se obtém
por sorte ou partilha. Literalmente traduz-se por “pedaço, quinhão, aquilo que
nos cabe por destino”. Homero as denominava em seu dialeto árcade-cipriota de Aîsas,
cujo sentido é “fiar”.
Segundo Hesíodo,
poeta beócio do século VIII a.C., as Moiras são filhas de Nix, a Noite, esta
por sua vez filha do Caos, o espaço aberto primordial, do qual se originou o
Cosmos. As Moiras pairam soberanas sobre os homens e os deuses, estão elevadas
a uma categoria distinta e intocável. Expressam leis que nem mesmo Zeus ou
outras divindades podem transgredir, sob pena de que a ordem natural do
Universo seja posta em risco, quando então Nêmesis, a deusa da Vingança,
levanta-se perturbada de seu sono para agir severamente no sentido de
restabelecer o equilíbrio no cosmos. Vejamos como isto se deu em dois clássicos
exemplos.
Ao primeiro deles podemos chamar “Julgamento de Páris”.
Nossa história começa em dia de festa; casava-se Peleu com Tétis, disputada
nereida (ninfa dos mares internos) que havia sido descartada por Zeus quando
dela ouvira falar que de seu ventre nasceria aquele que destronaria o pai.
Desistindo de possuí-la, fez-se presente ao casamento para abençoar os noivos.
Éris, deusa da discórdia, que por motivos óbvios não fora convidada para a
cerimônia, tomou um dos pomos de ouro do jardim das Hespérides, e o lançou
entre os presentes ofertados aos noivos, havendo antes gravado na maçã: “Para a
mais bela”. Foi o bastante! Gerou-se enorme mal estar; ninguém se arriscava a
endereçar o fruto. Seria para a noiva? Ou para a mais bela deusa convidada?
Hera, esposa de Zeus, queria o presente para si; Zeus preferia entregar o fruto
a Palas Atena, sua bela filha, e os convivas julgavam justo que o pomo fosse
dado a Afrodite, deusa da Beleza e do Amor. O impasse estava armado. Éris ria
deles todos…
Para ser
imparcial, Zeus ordenou a Hermes que levasse a incumbência de
julgar qual a mais bela àquele dentre os mortais que melhor tivesse noção de
estética. Hermes, que conhecia a fundo os homens, escolheu Páris, filho de
Príamo, rei de Tróia, para a ingrata tarefa. O moço, elegante e forte, vivia
tranqüilo aos pés do monte Ida, a guardar os rebanhos de seu pai, e estava bem
casado com a ninfa Enone, filha do deus dos rios. Evidentemente, temendo ferir
as suscetibilidades desta ou daquela, e atrair para si o ódio ou rancor das
deusas não contempladas, negou-se a proferir sentença declarando-se incapaz
para a missão. Hermes levou a Zeus sua recusa. E do Olimpo retornou com a
ameaça: Zeus fulminaria Tróia com seus raios caso Páris não escolhesse dentre
as três deusas, a mais bela. Note o leitor quantas vezes não exercemos esse
papel em nossas vidas, o de optar para evitar maior desgraça caso nos
furtássemos à obrigação.
A situação de
Páris, porém, trazia uma agravante. Ele sabia, por intermédio
de seu pai, que sua mãe, Hécuba, por ocasião de seu parto, tivera um pesadelo
no qual punha as mãos numa tocha acesa para ver se encontrava nela um corpo de
criança, momento este em que a chama se expandia e saltava pela janela de seu
quarto, incendiando Tróia, cujas casas e muralhas logo se transformavam em
ruínas tomadas por imensas labaredas. O sonho de sua mãe viera-lhe à mente como
terrível vaticínio – se não aceitasse a imposição de Zeus, Tróia arderia em
chamas por causa da ira divina. Para evitar o trágico destino, viu-se obrigado
a aceitar o desafio.
Nesse
ínterim, Hera já estava oferecendo-lhe o domínio sobre a Ásia
inteira caso fosse ela a escolhida; Palas Atena garantia-lhe a vitória em todas
as batalhas, e Afrodite prometia-lhe a paixão da mais bela mortal em troca de
seu voto. Por quem se dobraria o leitor num caso assim?
Páris
deixou-se seduzir pela
sensualidade. Deu a Afrodite a maçã e a deusa lhe revelou ser Helena,
esposa de Menelau, rei de Esparta, a mulher mais linda e cobiçada na Terra.
Páris teria que ir buscá-la, entretanto, mas Afrodite prometeu-lhe que o
favoreceria em tudo para que seu planejado rapto lograsse êxito.
O jovem anunciou visita diplomática a Menelau. Este
o recebeu com todas as honras em seu palácio. Páris passou então a cortejar
Helena, cujo nome grego hellenyon significa veneno – veja o leitor
como os gregos a tinham em boa conta! – e a beldade, atingida pelas brumas de
Afrodite, correspondeu ao amor do estrangeiro. Tendo sido Menelau convocado a
Creta para participar dos funerais de seu padrasto Catreu, pediu à esposa que
assumisse as prerrogativas de boa anfitriã. Páris viu aí sua oportunidade para
agir. Helena, tão logo o navio de Menelau cruzou o horizonte, reuniu tanto
tesouro quanto pôde furtar de seu marido e fugiu com o visitante.
Ao retornar a
seu palácio, surpreso com a traição sofrida, Menelau convocou todas as cidades
que lhe prestavam apoio e decidiu-se pelo pronto resgate da esposa, deflagrando
a Guerra de Tróia, que levaria aqueus e troianos a dez longos anos de lutas e
massacres. O confronto só terminaria com o episódio do cavalo de Tróia, peça
gigante de madeira deixada pelos aqueus à porta da cidade de Páris, oferecido
como sinal de reconhecimento por terem perdido a guerra para os troianos.
Festejavam estes sua vitória e bebiam em volta do cavalo que haviam
transportado para dentro da cidade quando, na madrugada, foram surpreendidos
por uma centena de guerreiros que, escondidos silenciosamente dentro dele,
foram saindo do cavalo e matando quantos bêbados encontravam pela frente. Os
soldados logo alcançaram as portas da cidade e, abrindo-as, deram passagem aos
exércitos de Menelau que espreitavam o momento da invasão. Com o ataque, a
cidade é saqueada, Páris é morto, Menelau recupera sua mulher, e Tróia acaba
literalmente em chamas.
Para escapar de sua sina, Páris assumira decisões que
ironicamente levaram Tróia ao encontro do destino previamente designado pelas
Moiras!
Façamos aqui o contraponto com a tragédia de Édipo Rei,
tal qual nos é contada por Sófocles (496-406 a.C.). Por razões distintas, pesava sobre
Laio dupla maldição, uma que lhe fora rogada por Zeus, outra por Hera. Esta o
proibira de ter prole. Desafiando a sentença, Laio teve um filho com Jocasta.
Temendo o pior, o casal leva a criança ao Oráculo de Delfos para conhecer qual
sombrio futuro estaria reservado ao recém-nascido. “O filho de Laio e Jocasta
será aquele que matará o próprio pai para desposar a própria mãe”. Era a
sentença de Delfos para a infeliz criança, nascida sob a praga de Zeus e Hera.
O casal resolve abandonar a criança. Laio perfura os
pezinhos do menino e, atando-os com uma correia, entrega-o a um de seus
escravos, dando-lhe ordens para que deixasse morrer a criança dependurada numa
árvore qualquer, num bosque distante dali, de modo que jamais se cumprisse a
profecia. O escravo executa as ordens, mas o choro da criança desperta a
atenção de um pastor que, ao encontrá-la, leva-a ao casal governante de
Corinto, Pólibo e Mérope. Ambos estéreis, o que mais desejavam na vida era um
filho. Adotam o menino e o batizam de Édipo, “o de pés inchados ou feridos”,
fazendo dele legítimo herdeiro de seu reino.
Numa festa,
Édipo ouve de um bêbado que não é filho de seus pais. Quase
mata o infame, e resolve ter ele próprio com Delfos para saber de sua origem.
Mas o oráculo limita-se a repetir o que houvera dito a seus pais. Perturbado,
Édipo resolve abandonar Corinto para evitar sua terrível sina. Não fazia idéia
de como poderia matar Pólibo para desposar Mérope, mas, para desmontar o
vaticínio, deixa os pais que tanto amava, preferindo viver como órfão errante a
ser insano parricida.
Sem lar,
desesperançado e sem herança, Édipo adormece numa encruzilhada. É acordado
estupidamente por quatro soldados de Laio, cuja carruagem passava por
ali. Desentende-se com o grupo, mata três deles; o quarto lhe foge, e
termina por assassinar Laio sem saber ser ele seu verdadeiro pai. O
restante da tragédia já sabemos: Édipo alcança Tebas, salva seus cidadãos da
monstruosa esfinge que devorava a todos (outra das maldições de Hera lançada
sobre Laio) e, por conta disso, com a notícia da morte de seu governante, é
aclamado rei. Desposa Jocasta e com ela tem quatro filhos. Nos momentos
culminantes da tragédia, deslinda-se toda a trama; é Jocasta quem primeiro
descobre haver dormido com o filho, assassino de seu esposo. E ela arranha as
paredes de seu quarto até sangrar as mãos; tentando derrubar o passado no qual
se vê enclausurada, suicida-se. Édipo, logo em seguida à mãe, decifra o próprio
enigma, e corre ao quarto do casal em desespero. Encontra Jocasta enforcada, e
resolve que aquela seria a derradeira cena que veria. O desgraçado arranca os
broches do vestido da mãe morta, e com eles perfura os próprios olhos.
Para escapar da maldição, Páris e Édipo, pobres mortais,
fugiram por caminhos próprios, e suas liberdades de escolha os conduziram à
plena realização de suas tragédias. E Nêmesis nada mais fez que cumprir o seu
papel nestes dois casos, restabelecendo cruelmente o equilíbrio do cosmos.
Este ardiloso tema do arbítrio acha-se detalhadamente
exposto no Arcano VI do Tarô, “O Enamorado”, ou “A Encruzilhada”. O Tarô
de Marselha nos mostra um jovem centralizado na carta, entre duas mulheres.
Cada uma delas cobra-lhe sua escolha. A moça à esquerda do rapaz veste
predominantemente o azul, cor relacionada neste baralho ao mundo emocional e
intuitivo. Ela toca o coração do moço, como se quisesse despertar sua intuição.
Afinal, este órgão está classicamente associado às emoções, e figurou como sede
da alma desde os antigos até o fim do Renascimento. A outra personagem, à
direita do rapaz, veste principalmente o vermelho, a traduzir o lado racional
da vida, ou nosso pensamento lógico; por isso aparenta ser mais velha,
portanto, mais serena. Puxa-o pelo ombro, de modo a fazer-se bem sentida, como
o faz a realidade com todos nós, a prender nossa atenção. Note-se aqui como o
rapaz lhe volta não somente o olhar, mas sua cabeça toda, a representar a
consciência, ou a razão claramente dirigida. Embora a via intuitiva, que lhe é
alternativa, não lhe prenda tanto a atenção, em compensação recebe o
direcionamento da flecha do cupido que, jovial e belo, paira sem ser visto
sobre a cabeça (a consciência) do rapaz.
O cupido
simboliza aí o inconsciente, aquilo tudo que está além do mundo
racional, o não sabido, instância desconhecida que, ao mesmo tempo, nos assusta
e nos guia. Ainda que represente algo oculto, repleto de meandros e mistérios,
lança flechas que nos aguçam a percepção, provocando-nos vislumbres muito além
da vida consciente, à qual está acostumado o nosso ego. Em resumo, a flecha do
cupido é nossa intuição. E quem de nós pode negar que amiúde ouvimos essa voz
interior, a nos guiar os passos, a nos inspirar em momentos difíceis, a nos
orientar pelo caminho? Decisões racionais intuitivamente inspiradas são sempre
mais sábias. Pouco importa por qual dos caminhos seguirá o jovem do Tarô, o
necessário é que não reste estanque, que não deixe de optar. Seja qual for a
sua escolha, esta o levará por caminhos onde predomine razão ou intuição, mas
nunca aonde uma delas exista totalmente sem a outra, até porque é impossível
separar estas funções em nosso psiquismo.
Razão e
intuição é tudo o que
nos move, e surgirão no Arcano VII seguinte, “O Carro”, transformadas cada
qual na figura de um cavalo, um vermelho, o outro azul. Mesmo puxando a
carruagem para direções opostas, a resultante deste jogo de forças é um
movimento retilíneo, conjugado pela harmonia que se estabelece entre os
animais; note-se suas cabeças emparelhadas, voltadas para um mesmo foco.
Curiosamente, nas cartas do Tarô, largamente usadas para o exercício da
adivinhação, jaz oculta uma de suas maiores verdades: a lição de que está
dentro de nós nosso destino. Guardamos no coração as sementes da felicidade e
da realização. A vida é o jardim onde podemos semeá-las. Diante das dimensões
titânicas dos acontecimentos, das torrentes, das forças descomunais da vida,
nunca devemos deixar de contrapor aquilo que trazemos de mais nobre e
requintado em nossas tão modestas existências: o exercício da escolha. O
fundamental diante do impasse é que avancemos livremente.
Somos sempre esse herói que percorre a jornada iniciática
da vida, bem representada pela seqüência das cartas do Tarô. Somos personagens
que, feito Páris ou Édipo, ousam enfrentar os deuses e seus desígnios, e
colhemos as conseqüências de cada um de nossos atos. Herói, palavra grega a
significar “pequeno deus, grande homem”, é aquele que rompe o métron,
ou a medida que lhe cabe, que luta com o destino procurando ultrapassar seus
limites num esforço constante para a realização de seus feitos. Para as vezes
em que comete excesso ou desmedida, os gregos guardam o termo hybris,
quando então Nêmesis enlouquecida se revolta. Como diria Shakespeare (1564-1616),
“a liberdade indócil é domada pela própria desgraça”.
Certo é que sofremos na alma desse herói, fadados que
estamos a decidir em tempos de angústia. Mas quando, com coragem, nos lançamos
em busca do destino, lá na frente, encontramos a nós mesmos. Se com nossos
passos desenhamos nossa história, é imprescindível que experimentemos a
liberdade de brincar de roda nas palmas das mãos de um deus chamado destino.
Incognoscível, mas indiretamente revelada à medida que estreitamos o
compromisso com a vida, esta divindade nos leva a preencher com sabor nossa
existência. Transforma-se naquilo que de mais humano possa estar em nós se
depurando e, ao mesmo tempo, nos transforma no que de mais divino possa estar
sendo sentido. E os heróis se compreendem uns aos outros e a si mesmos quando
se encontram no meio desse caminho.
O citado
Sartre dizia: “uma vez
explodida a liberdade na alma de um homem, contra esse nada mais podem os
deuses”. Imagino o quanto Nêmesis não esteja atormentando sua alma por conta
disso, mas a lição é esta: se está difícil resolver o dilema quanto a estarmos
presos ou não aos ditames do destino, tanto melhor que sejamos nós mesmos os
primeiros a desejar construí-lo da melhor maneira. E isto só o fazemos com um
compromisso ético inabalável, reafirmado com a autenticidade de cada passo dado
ao longo deste nosso desafiante fio de vida.
................................................................................................................
Ref
bibliográfica:
http://www.amigodaalma.com.br/2009/12/31/esperanca-natural-designio-da-alma/
0 comentários:
Postar um comentário
Namaste!
Seus comentários alegram nosso alma.