domingo, 7 de outubro de 2012

ENTRE O ARBÍTRIO E O DESTINO




 Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 344, maio/2001
Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

O livre arbítrio existe? Somos de fato seres livres? Temos realmente permissão para fazer tudo aquilo que queremos, já guardado o respeito pela liberdade alheia? E quanto ao destino? Nascemos predeterminados, destinados a experimentar a sensação de que agimos “livremente” dentro de certas possibilidades já previstas desde o início? Tudo o que fazemos na vida nada mais é do que cumprir um risco já traçado, ou escolhemos, passo a passo, o caminho por onde seguir, imprimindo ao longo dele nosso rastro pessoal ao qual chamamos liberdade?
Arbítrio ou Destino?
Arbítrio ou Destino?
De fato, sempre que assumimos um comportamento ético frente à vida, obrigamo-nos a certas atitudes que bem nos revelam quão relativa é nossa liberdade diante dos conflitos que nos são impostos, dilemas estes aos quais chamamos destino. Então, escolhemos sofrer ou a dor é atributo inerente à existência? “Sofrer é o destino dos mortais”, diria Eurípedes (485-406 a.C.), poeta trágico, máxima esta à qual o filósofo existencialista Jean Paul Sartre (1905-1980) traria o contraponto: “Estamos condenados a ser livres”. Uma angustiante verdade! Afinal, toda ação humana pressupõe dor, não só a imediata, que nos força a optar por algo em detrimento de todo o resto que deixamos, como a dor seguinte, previsível ou não, acarretada pelas conseqüências que advêm de tais escolhas.
O destino, em verdade, parece aquele irmão ciumento, invejoso da capacidade humana de ser livre. E não raro ele é cruel, capaz de enredar em suas malhas as nossas frágeis liberdades diferenciadas, dignas de compaixão.
Homero
Homero
Ora, os gregos, em época bem anterior a Homero (séc. IX a.C.) já admitiam que nossa existência, desde o instante do nascimento, estivesse predestinada. Imaginavam no Olimpo, morada dos deuses, a presença das três Moiras (Parcas, entre os romanos) a decidir tudo por nós. Sem personificação no princípio, depois representadas por figuras femininas, foram batizadas de Cloto, “aquela que fia”; Láquesis, “aquela que mede ou lança a sorte”; e Átropos (a, sem; e tropein, voltar) que, inflexível, corta com sua tesoura o fio de nossas vidas, sem jamais retroceder em suas decisões. O termo Moira vem do verbo meiresthai, a designar aquilo que se obtém por sorte ou partilha. Literalmente traduz-se por “pedaço, quinhão, aquilo que nos cabe por destino”. Homero as denominava em seu dialeto árcade-cipriota de Aîsas, cujo sentido é “fiar”.
As Moiras-Parcas.0.5
Segundo Hesíodo, poeta beócio do século VIII a.C., as Moiras são filhas de Nix, a Noite, esta por sua vez filha do Caos, o espaço aberto primordial, do qual se originou o Cosmos. As Moiras pairam soberanas sobre os homens e os deuses, estão elevadas a uma categoria distinta e intocável. Expressam leis que nem mesmo Zeus ou outras divindades podem transgredir, sob pena de que a ordem natural do Universo seja posta em risco, quando então Nêmesis, a deusa da Vingança, levanta-se perturbada de seu sono para agir severamente no sentido de restabelecer o equilíbrio no cosmos. Vejamos como isto se deu em dois clássicos exemplos.
Ao primeiro deles podemos chamar “Julgamento de Páris”. Nossa história começa em dia de festa; casava-se Peleu com Tétis, disputada nereida (ninfa dos mares internos) que havia sido descartada por Zeus quando dela ouvira falar que de seu ventre nasceria aquele que destronaria o pai. Desistindo de possuí-la, fez-se presente ao casamento para abençoar os noivos. Éris, deusa da discórdia, que por motivos óbvios não fora convidada para a cerimônia, tomou um dos pomos de ouro do jardim das Hespérides, e o lançou entre os presentes ofertados aos noivos, havendo antes gravado na maçã: “Para a mais bela”. Foi o bastante! Gerou-se enorme mal estar; ninguém se arriscava a endereçar o fruto. Seria para a noiva? Ou para a mais bela deusa convidada? Hera, esposa de Zeus, queria o presente para si; Zeus preferia entregar o fruto a Palas Atena, sua bela filha, e os convivas julgavam justo que o pomo fosse dado a Afrodite, deusa da Beleza e do Amor. O impasse estava armado. Éris ria deles todos…
Julgamento de Páris, detalhe de taça com figuras vermelhas de Herron
Julgamento de Páris, detalhe de taça com figuras vermelhas de Herron: Páris, sentado, recebe a visita de Hermes; atrás deste, pela ordem, as deusas Palas Atena, Hera e Afrodite.
Para ser imparcial, Zeus ordenou a Hermes que levasse a incumbência de julgar qual a mais bela àquele dentre os mortais que melhor tivesse noção de estética. Hermes, que conhecia a fundo os homens, escolheu Páris, filho de Príamo, rei de Tróia, para a ingrata tarefa. O moço, elegante e forte, vivia tranqüilo aos pés do monte Ida, a guardar os rebanhos de seu pai, e estava bem casado com a ninfa Enone, filha do deus dos rios. Evidentemente, temendo ferir as suscetibilidades desta ou daquela, e atrair para si o ódio ou rancor das deusas não contempladas, negou-se a proferir sentença declarando-se incapaz para a missão. Hermes levou a Zeus sua recusa. E do Olimpo retornou com a ameaça: Zeus fulminaria Tróia com seus raios caso Páris não escolhesse dentre as três deusas, a mais bela. Note o leitor quantas vezes não exercemos esse papel em nossas vidas, o de optar para evitar maior desgraça caso nos furtássemos à obrigação.
A situação de Páris, porém, trazia uma agravante. Ele sabia, por intermédio de seu pai, que sua mãe, Hécuba, por ocasião de seu parto, tivera um pesadelo no qual punha as mãos numa tocha acesa para ver se encontrava nela um corpo de criança, momento este em que a chama se expandia e saltava pela janela de seu quarto, incendiando Tróia, cujas casas e muralhas logo se transformavam em ruínas tomadas por imensas labaredas. O sonho de sua mãe viera-lhe à mente como terrível vaticínio – se não aceitasse a imposição de Zeus, Tróia arderia em chamas por causa da ira divina. Para evitar o trágico destino, viu-se obrigado a aceitar o desafio.
Nesse ínterim, Hera já estava oferecendo-lhe o domínio sobre a Ásia inteira caso fosse ela a escolhida; Palas Atena garantia-lhe a vitória em todas as batalhas, e Afrodite prometia-lhe a paixão da mais bela mortal em troca de seu voto. Por quem se dobraria o leitor num caso assim?
Páris deixou-se seduzir pela sensualidade. Deu a Afrodite a maçã e a deusa lhe revelou ser Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, a mulher mais linda e cobiçada na Terra. Páris teria que ir buscá-la, entretanto, mas Afrodite prometeu-lhe que o favoreceria em tudo para que seu planejado rapto lograsse êxito.
O jovem anunciou visita diplomática a Menelau. Este o recebeu com todas as honras em seu palácio. Páris passou então a cortejar Helena, cujo nome grego hellenyon significa veneno – veja o leitor como os gregos a tinham em boa conta! – e a beldade, atingida pelas brumas de Afrodite, correspondeu ao amor do estrangeiro. Tendo sido Menelau convocado a Creta para participar dos funerais de seu padrasto Catreu, pediu à esposa que assumisse as prerrogativas de boa anfitriã. Páris viu aí sua oportunidade para agir. Helena, tão logo o navio de Menelau cruzou o horizonte, reuniu tanto tesouro quanto pôde furtar de seu marido e fugiu com o visitante.
 Cavalo de Troia2.0.35Ao retornar a seu palácio, surpreso com a traição sofrida, Menelau convocou todas as cidades que lhe prestavam apoio e decidiu-se pelo pronto resgate da esposa, deflagrando a Guerra de Tróia, que levaria aqueus e troianos a dez longos anos de lutas e massacres. O confronto só terminaria com o episódio do cavalo de Tróia, peça gigante de madeira deixada pelos aqueus à porta da cidade de Páris, oferecido como sinal de reconhecimento por terem perdido a guerra para os troianos. Festejavam estes sua vitória e bebiam em volta do cavalo que haviam transportado para dentro da cidade quando, na madrugada, foram surpreendidos por uma centena de guerreiros que, escondidos silenciosamente dentro dele, foram saindo do cavalo e matando quantos bêbados encontravam pela frente. Os soldados logo alcançaram as portas da cidade e, abrindo-as, deram passagem aos exércitos de Menelau que espreitavam o momento da invasão. Com o ataque, a cidade é saqueada, Páris é morto, Menelau recupera sua mulher, e Tróia acaba literalmente em chamas.
Troia em chamas
Troia em chamas
Para escapar de sua sina, Páris assumira decisões que ironicamente levaram Tróia ao encontro do destino previamente designado pelas Moiras!
Façamos aqui o contraponto com a tragédia de Édipo Rei, tal qual nos é contada por Sófocles (496-406 a.C.). Por razões distintas, pesava sobre Laio dupla maldição, uma que lhe fora rogada por Zeus, outra por Hera. Esta o proibira de ter prole. Desafiando a sentença, Laio teve um filho com Jocasta. Temendo o pior, o casal leva a criança ao Oráculo de Delfos para conhecer qual sombrio futuro estaria reservado ao recém-nascido. “O filho de Laio e Jocasta será aquele que matará o próprio pai para desposar a própria mãe”. Era a sentença de Delfos para a infeliz criança, nascida sob a praga de Zeus e Hera.
O casal resolve abandonar a criança. Laio perfura os pezinhos do menino e, atando-os com uma correia, entrega-o a um de seus escravos, dando-lhe ordens para que deixasse morrer a criança dependurada numa árvore qualquer, num bosque distante dali, de modo que jamais se cumprisse a profecia. O escravo executa as ordens, mas o choro da criança desperta a atenção de um pastor que, ao encontrá-la, leva-a ao casal governante de Corinto, Pólibo e Mérope. Ambos estéreis, o que mais desejavam na vida era um filho. Adotam o menino e o batizam de Édipo, “o de pés inchados ou feridos”, fazendo dele legítimo herdeiro de seu reino.
Numa festa, Édipo ouve de um bêbado que não é filho de seus pais. Quase mata o infame, e resolve ter ele próprio com Delfos para saber de sua origem. Mas o oráculo limita-se a repetir o que houvera dito a seus pais. Perturbado, Édipo resolve abandonar Corinto para evitar sua terrível sina. Não fazia idéia de como poderia matar Pólibo para desposar Mérope, mas, para desmontar o vaticínio, deixa os pais que tanto amava, preferindo viver como órfão errante a ser insano parricida.
Édipo decifra o enigma da esfinge de Tebas
Édipo decifra o enigma da esfinge de Tebas
Sem lar, desesperançado e sem herança, Édipo adormece numa encruzilhada. É acordado estupidamente por quatro soldados de Laio, cuja carruagem passava por ali. Desentende-se com o grupo, mata três deles; o quarto lhe foge, e termina por assassinar Laio sem saber ser ele seu verdadeiro pai. O restante da tragédia já sabemos: Édipo alcança Tebas, salva seus cidadãos da monstruosa esfinge que devorava a todos (outra das maldições de Hera lançada sobre Laio) e, por conta disso, com a notícia da morte de seu governante, é aclamado rei. Desposa Jocasta e com ela tem quatro filhos. Nos momentos culminantes da tragédia, deslinda-se toda a trama; é Jocasta quem primeiro descobre haver dormido com o filho, assassino de seu esposo. E ela arranha as paredes de seu quarto até sangrar as mãos; tentando derrubar o passado no qual se vê enclausurada, suicida-se. Édipo, logo em seguida à mãe, decifra o próprio enigma, e corre ao quarto do casal em desespero. Encontra Jocasta enforcada, e resolve que aquela seria a derradeira cena que veria. O desgraçado arranca os broches do vestido da mãe morta, e com eles perfura os próprios olhos.
Para escapar da maldição, Páris e Édipo, pobres mortais, fugiram por caminhos próprios, e suas liberdades de escolha os conduziram à plena realização de suas tragédias. E Nêmesis nada mais fez que cumprir o seu papel nestes dois casos, restabelecendo cruelmente o equilíbrio do cosmos.
Arcano VI - A Encruzilhada; Tarô de Marselha
Arcano VI - A Encruzilhada; Tarô de Marselha
Este ardiloso tema do arbítrio acha-se detalhadamente exposto no Arcano VI do Tarô, “O Enamorado”, ou “A Encruzilhada”. O Tarô de Marselha nos mostra um jovem centralizado na carta, entre duas mulheres. Cada uma delas cobra-lhe sua escolha. A moça à esquerda do rapaz veste predominantemente o azul, cor relacionada neste baralho ao mundo emocional e intuitivo. Ela toca o coração do moço, como se quisesse despertar sua intuição. Afinal, este órgão está classicamente associado às emoções, e figurou como sede da alma desde os antigos até o fim do Renascimento. A outra personagem, à direita do rapaz, veste principalmente o vermelho, a traduzir o lado racional da vida, ou nosso pensamento lógico; por isso aparenta ser mais velha, portanto, mais serena. Puxa-o pelo ombro, de modo a fazer-se bem sentida, como o faz a realidade com todos nós, a prender nossa atenção. Note-se aqui como o rapaz lhe volta não somente o olhar, mas sua cabeça toda, a representar a consciência, ou a razão claramente dirigida. Embora a via intuitiva, que lhe é alternativa, não lhe prenda tanto a atenção, em compensação recebe o direcionamento da flecha do cupido que, jovial e belo, paira sem ser visto sobre a cabeça (a consciência) do rapaz.
O cupido simboliza aí o inconsciente, aquilo tudo que está além do mundo racional, o não sabido, instância desconhecida que, ao mesmo tempo, nos assusta e nos guia. Ainda que represente algo oculto, repleto de meandros e mistérios, lança flechas que nos aguçam a percepção, provocando-nos vislumbres muito além da vida consciente, à qual está acostumado o nosso ego. Em resumo, a flecha do cupido é nossa intuição. E quem de nós pode negar que amiúde ouvimos essa voz interior, a nos guiar os passos, a nos inspirar em momentos difíceis, a nos orientar pelo caminho? Decisões racionais intuitivamente inspiradas são sempre mais sábias. Pouco importa por qual dos caminhos seguirá o jovem do Tarô, o necessário é que não reste estanque, que não deixe de optar. Seja qual for a sua escolha, esta o levará por caminhos onde predomine razão ou intuição, mas nunca aonde uma delas exista totalmente sem a outra, até porque é impossível separar estas funções em nosso psiquismo.
Marselha.arcano 7
Razão e intuição é tudo o que nos move, e surgirão no Arcano VII seguinte, “O Carro”, transformadas cada qual na figura de um cavalo, um vermelho, o outro azul. Mesmo puxando a carruagem para direções opostas, a resultante deste jogo de forças é um movimento retilíneo, conjugado pela harmonia que se estabelece entre os animais; note-se suas cabeças emparelhadas, voltadas para um mesmo foco. Curiosamente, nas cartas do Tarô, largamente usadas para o exercício da adivinhação, jaz oculta uma de suas maiores verdades: a lição de que está dentro de nós nosso destino. Guardamos no coração as sementes da felicidade e da realização. A vida é o jardim onde podemos semeá-las. Diante das dimensões titânicas dos acontecimentos, das torrentes, das forças descomunais da vida, nunca devemos deixar de contrapor aquilo que trazemos de mais nobre e requintado em nossas tão modestas existências: o exercício da escolha. O fundamental diante do impasse é que avancemos livremente. 
Somos sempre esse herói que percorre a jornada iniciática da vida, bem representada pela seqüência das cartas do Tarô. Somos personagens que, feito Páris ou Édipo, ousam enfrentar os deuses e seus desígnios, e colhemos as conseqüências de cada um de nossos atos. Herói, palavra grega a significar “pequeno deus, grande homem”, é aquele que rompe o métron, ou a medida que lhe cabe, que luta com o destino procurando ultrapassar seus limites num esforço constante para a realização de seus feitos. Para as vezes em que comete excesso ou desmedida, os gregos guardam o termo hybris, quando então Nêmesis enlouquecida se revolta. Como diria Shakespeare (1564-1616), “a liberdade indócil é domada pela própria desgraça”. 
Jean Paul Sartre
Jean Paul Sartre
Certo é que sofremos na alma desse herói, fadados que estamos a decidir em tempos de angústia. Mas quando, com coragem, nos lançamos em busca do destino, lá na frente, encontramos a nós mesmos. Se com nossos passos desenhamos nossa história, é imprescindível que experimentemos a liberdade de brincar de roda nas palmas das mãos de um deus chamado destino. Incognoscível, mas indiretamente revelada à medida que estreitamos o compromisso com a vida, esta divindade nos leva a preencher com sabor nossa existência. Transforma-se naquilo que de mais humano possa estar em nós se depurando e, ao mesmo tempo, nos transforma no que de mais divino possa estar sendo sentido. E os heróis se compreendem uns aos outros e a si mesmos quando se encontram no meio desse caminho.
O citado Sartre dizia: “uma vez explodida a liberdade na alma de um homem, contra esse nada mais podem os deuses”. Imagino o quanto Nêmesis não esteja atormentando sua alma por conta disso, mas a lição é esta: se está difícil resolver o dilema quanto a estarmos presos ou não aos ditames do destino, tanto melhor que sejamos nós mesmos os primeiros a desejar construí-lo da melhor maneira. E isto só o fazemos com um compromisso ético inabalável, reafirmado com a autenticidade de cada passo dado ao longo deste nosso desafiante fio de vida.
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Ref bibliográfica:

http://www.amigodaalma.com.br/2009/12/31/esperanca-natural-designio-da-alma/

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